Eu nao acho escrever difícil. Muitos escritores adoram tornar nosso ofício mais importante dizendo o quanto é trabalhoso e sofrido. Mas eu, sagitariana que sou, escrevo porque é fácil. Pensa: de todas as expressoes artísticas, escrever histórias é a que menos demanda ferramentas, material ou a ajuda de pessoas externas. Nao é necessário softwares complexos, instrumentos caros importados da Europa ou - o pior de tudo - um cara do som, que é sempre um músico com pouca disposicao para ajudar projetos alheios.
Eu, inclusive, passei a me dedicar mais seriamente à literatura porque fazer cinema demandava organizar a agenda - e o ego - de pessoas demais, além de uma boa cenografia e efeitos especiais convincentes serem além do meu orcamento. Quando eu fazia cinema, a regra era sempre reduzir, diminuir, fazer caber. Na literatura, nao. Na literatura consigo expandir, imaginar a porra que eu quiser. Só preciso botar uma palavra depois da outra. Encontrar a aliteracao correta. Procurar a expressao certa no dicionário de termos afins. Ficar horas na wikipedia procurando o termo exato para a manopla da cadeira de rodas.
Em geral eu escrevo contos curtos e reviso pouco. Duas, tres vezes no máximo e já mando bala. As histórias chegam prontas. As palavras se combinam antes mesmo de chegar no teclado. Adoro ler as coisas quando parece que o santo que me incorporou foi que escreveu pra mim.
Acontece que agora estou trabalhando numa história que nenhum santo escreveu pra mim. Pelo contrário, parece que alguém que mal entende como a língua funciona escreveu. É basicamente um outline de 16 mil palavras cheio de notas de "reescrever" no Google Docs. Baixei o trial do Scrivener só pra tentar mexer nele, fiquei confusa com o programa e deixei quieto. Estou considerando imprimir todas as 43 páginas para riscar à mao e tornar o processo de edicao menos odioso, dar uma distanciada do texto. Levar o notebook para um café e mudar de ares com um café gelado e um bolinho. A maioria dos escritores prefere trabalhar um texto meio merda do que encarar uma página em branco. Dao gracas a deus que ninguém vai ler a primeira versao. Mas alguém tem que ler a primeira versao: eu tenho que ler.
O Ana Nao Vem Mais foi reescrito milhoes de vezes, passou pela mao de nao sei quantos amigos-que-deram-sugestao e editores, mudou de nome, chegou uma hora que nem eu aguentava mais aquela história. E sei que geralmente livros mais longos sao assim mesmo. Precisam ser trabalhados, tem muito mais inconsistencias, levam tempo pra nascer. O comeco vira o final que vira o comeco. Tudo é reencaixado, como um quebra-cabeca.
O Blood Roses (working title) é o texto novo que estou trabalhando, em paralelo com outras coisas, que está me dando muito trabalho. Primeiro porque é em ingles - e nao sei se traduzo pro portugues para os meus leitores dez fieis ou se mantenho na língua franca para alcancar mais pessoas. Segundo porque é sobre minha mae. E esse é o meu assunto preferido em terapia, mas que tenho dificuldade de falar com as pessoas em geral. Nao sei o quanto as pessoas querem ler sobre meus mommy issues, nao sei o quanto vao se identificar com os meus problemas pessoais. Mas é melhor que uma tela em branco, acho.
Enfim, o novo assunto da newsletter serei eu, tentando encontrar minha nova voz na terra que nao tem palmeiras onde canta o sabiá. Voces ainda vao me ouvir falar muito sobre esse processo aqui.
Ainda sobre mommy issues, ontem peguei a última sessao em Köln com áudio original1 de Beau is Afraid, o novo do Ari Aster. A tensao e o fato de eu ter visto um filme de 3 horas na quarta fileira de um cinema pequeninho me deixaram com dor no pescoco até agora. Mas, olha, foi maravilhoso ver alguém reproduzir todos os meus piores pesadelos na tela. É o tipo de filme que voce tem que fazer o Paulo Vilela, ver no cinema e se forcar a prestar atencao durante a viagem toda. Nao é um filme pra todo mundo (nenhum é), mas esse certamente foi pra mim. Quando algum dia eu voltar pro cinema, quero fazer filmes assim.
Aqui na Alemanha eles dublam muito os filmes, entao para assisti-los na versao original com legenda, tem que procurar as sessoes originais.
Nossa, queria muito achar fácil escrever. Às vezes é, mas se eu tenho um assunto que quero destrinchar, muitas vezes eu preciso ir pro cantinho da sala chorar. To louca pra assistir "Beau is Afraid" (meu deus, mas mais um filme de 3h!).... vc encontra legendado no cinema em inglês por aí? Aqui ainda não dei essa sorte... será que tem em Berlim e to comendo mosca?