Passei julho quase inteiro viajando pra dentro de mim. Rebecca chegou dia 4, trazendo 3 cachacas, 4 caixas de pacoquinha e 2 anos de saudade na mala de apenas 23kg. Eu tinha planejado uma maratona de 7 cidades e uma jornada de redescobrimento familiar. Em Munique, cerveja, um castelo da Disney e um museu de ciencia encaixado no último minuto; em Berlim, um city tour com a história da Alemanha; em Erfurt, a farmácia do meu bisavo e a sinagoga mais antiga da Europa. Em Amsterdam, finalmente, um tour contando a história da Anne Frank e dos judeus dos Países Baixos. E, como nao poderia deixar de ser, em Colonia, a minha vida cotidiana. Talvez eu tenha esquecido de planejar um tempo de descanso, uma oportunidade de lamber feridas abertas, tanto as de 100 quanto as de 2 anos atrás.
Encontrei um Golem na primeira sala do museu de ciencia de Munique, na sessao de automatos. A estátua era uma réplica do monstro usado no filme expressionista sobre o Golem de Praga, produzido por um judeu às vésperas da ascensao do nazismo. Encaixa perfeitamente na cidade-berco do nazismo. Na walking tour que fizemos em seguida, a guia nos mostrou um caminho dourado por onde pessoas avessas ao governo de extrema direita passavam para nao ter que acentir ao ditador. Foi também o mesmo lugar onde elas foram fuziladas depois de terem sido denunciadas pelos próprios vizinhos.
Em Erfurt, descobri que a Sinagoga onde meu avo fez barmitzva nao existe mais. Foi destruída, assim como as pessoas que a frequentavam, que passaram de 30 porcento da populacao para apenas 3. Para compensar o massacre, a cidade organizou uma rota do judaísmo, composta de duas sinagogas-museu e uma meia dúzia construcoes importantes, mostrando como era a vida dessas pessoas, da idade média até o século XX. Na Sinagoga-Mais-Velha-da-Europa, uma exposicao de artigos mágicos judaicos: facsímiles de livros sagrados. No subsolo, tesouro enterrado de judeus ainda na idade média forcados a deixar suas casas por pessoas amendontradas por palavras.
Ainda na estrada, descobri que os Stoppelsterne1 da minha família estavam em Berlim. Ali, pertinho de Kreuzberg. Isso que eu jurava que essas plaquinhas estavam na Polonia. E como é diferente ouvir as histórias e ver uma pedrinha que prova que sim, seus parentes foram mesmo deportados e torturados, nao é só história do seu pai para te convencer a comer batata.
Já o tour da Anne Frank em Amsterdam surpreendemente nao foi a mais deprimente da viagem, gracas a um guia portugues muito simpático e ao histórico combativo dos Países Baixos. A ressaca do coffe shop, onde eu me arrependi amargamente de ter planejado uma viagem tao encavalada, já foi outra história.
Mas pesado mesmo foi Colonia, com menos passeio e mais vida doméstica. Sentir minha casa e meu casamento invadidos, ter minha cama desfeita depois de 2 anos juntando cada pedacinho. Conversas pesadas sobre quem sofreu mais nos últimos anos sem a outra, quem abandonou quem. Que ela nunca mais seria abandonada, que estavamos exaustas. Que eu estava exausta, que eu nao aguentava mais passear, conversar, dar atencao. E que estava tudo bem agora. Águas passadas, agora está tudo bem. A paranóia, veja, é geracional. O rancor também. Às vezes só o tempo consegue fechar algumas feridas. E às vezes é realmente necessário acordar um golem com palavras mágicas.
Stoppelsterne, "pedras de tropecar" em alemao, sao um projeto financiado pelo governo alemao, criado por um artista aqui de colonia. Sao pedrinhas douradas encaixadas a alguns centímetros do piso, feitos para vc tropecar e olhar para baixo. Nelas, está escrito o nome, a data de nascimento, a data da deportacao e em que campo de concentracao elas foram assassinadas.